O amigo posto a prova


in Revista Expresso, 9 de Novembro de 2013

Estamos em Aveiro, a luminosa, rasgada pelos diversos canais como os dedos de uma mão, quais veias azuis vivificantes e definidoras. Um deles, perpendicular ao Central e ao das Pirâmides, é o Canal de São Roque, muito ligado ao imaginário infantil cagaréu. Na longa que o bordeja – esbeltos moliceiros turísticos sulcam-no espaçadamente -, animada por bares e algum comércio, encontramos, no nº 83, o restaurante Salpoente.

Conheci-o em 1996, mas era outra coisa (embora já de instalação muito cuidada e lista extensa e variada). Na versão atual, com mudança de proprietário, inaugurado em Fevereiro de 2013, passou a ocupar dois (antes apenas um) antigos armazéns de sal brilhantemente recuperados. Dispõe alem da sala de refeições principal, de uma salinha privada (8 pessoas), da zona de balcão e algumas mesas anexas para comeres mais descontraídos e de outra sala independente para grupos.O espaço interior conjuga com felicidade os diferentes elementos, do soalho até ao belo jogo do travejamento do teto, num ambiente moderno e cheio de luz, com cadeiras confortáveis e mesas bem servidas de alfaias e atoalhados.

A lista de comidas começa por um menu de degustação (5 pratos criados pelo chefe, 45€). Depois regista 6 petiscos Salpoente, 2 sopas, 6 entradas, 1 prato de peixe (robalo do mar), 2 Vegetarianos, 7 O Fiel Companheiro (bacalhau, evidentemente) e 3 Carnes. A aposta fundamental da casa é mesmo no bacalhau, afirmando-se praticantes de uma “cozinha progressista” que “ recria uma cozinha tradicional portuguesa”. Seja como for, não lhes ficava nada mal retirarem da lista o prato de bacalhau fresco, pois, como tão bem sabem aveirenses e ilhavenses, o bacalhau que há cinco séculos se come em Portugal é o salgado e seco.

Trabalhos práticos. “Salada de Ovas de bacalhau com vinagrete e pimentos” (4,5€): muito saborosas as ovas e vai-lhes muito bem o molho abundante. “Bolinhos de bacalhau com chutney de pimentos” (3,5€):três unidades; bem fritos, com a crostazinha da ordem, sem pinga de oleosidade, a salsa devida, equilíbrio entre quantidades de bacalhau e batata, esta é que estava demasiado desfeita, afectando a textura, que não o sabor. “Trufas de alheira sobre puré de batata trufado” (3,5€): três bolinhas de massa de alheira fritas sem pele, gostosas; aqui o verdadeiro significado de “trufa” é para esquecer. Dos petiscos para as entradas. “Vieira corada em azeite, sementes de papoila e espuma de batata, raspa de limão, caviar avruga” (12€): no essencial, três vieiras pequeninas, nada más, o tal “avruga” a armar aos cucos, fora que está das três variedades do caviar a sério: beluga, oscietre e sevruga. “O ovo e o queijo da serra” (7€): ovo a baixa temperatura , assente num creme do queijo, pasta de cogumenlos e azeitonas, torresmos e espargos verdes glaceados, numa complexa combinação afirmativa. “Línguas de bacalhau estufadas, aromatizadas com coentros e crocante de pão” (5,50€): com o toque gelatinoso que lhes compete, numa espécie e fricassé, pena estarem manifestamente salgadas.

Aos pratos principais, infelizmente a despachar. “O bacalhau, o camarão-tigre e o caviar de ouriço do mar”(€32): boa a intenção, mas o bacalhau (cozido a baixa temperatura) estava áspero, o tigre (só metade) corado pouco adiantou, o molho do ouriço dominador e de benefício discutível. “Bacalhau contemporâneo” (€16,50): positivo, ele assado com crosta de broa, contemporaneidade a cargo da batata esmagada com azeitonas, pimentos em coulis e chalotas caramelizadas. “Bacalhau e espuma de batata” (€15,50): salteado, cebola e grelos idem, ovo cozido, normalidade. “Feijoada de sames de bacalhau” (€12,50): sápida e apurada, com o seu toque de cominhos, a apetecer molhar o pão. “Magret de pato” (€19): muito saboroso e suculento, assessoria de batata gratinada, minilegumes glaceados e molho de soja.

Quinteto de doces originais. Garrafeira adequada. Serviço competente.
Está-se otimamente, a criatividade do cozinheiro Duarte Eira é consequente, o bacalhau (conquanto nalguns casos a matéria-prima não parecesse da superior) é devidamente honrado.